ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA – VIABILIDADE DE INTIMAÇÃO JUDICIAL PARA PURGA DA MORA

ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA – VIABILIDADE DE INTIMAÇÃO JUDICIAL PARA PURGA DA MORA

É muito comum nos depararmos, na prática, com situações em que é inviável intimar os devedores, pois os cartórios, muitas vezes, se negam a certificar a ocultação ou o local incerto do fiduciante, provavelmente em razão da sua responsabilidade civil, impossibilitando a intimação por hora certa ou por edital. Nesses casos, ainda que não haja previsão na Lei 9.514/97, a intimação pela via judicial do devedor é a alternativa viável para que se dê sequência ao procedimento de execução de alienação fiduciária.

INTRODUÇÃO

É sabido que antes da Lei 9.514, de 20 de novembro de 1997, em que pese haver uma real necessidade habitacional por parte da população, não havia um mercado imobiliário de grande expressão no Brasil. Em grande parte, essa inexpressão do mercado se dava pela falta de segurança que havia para a recuperação de crédito nos casos de inadimplemento pelo devedor.

A garantia mais utilizada nas transações imobiliárias até a criação da Lei 9.514 era a garantia hipotecária, que exigia que o credor, para executar o seu crédito imobiliário, acionasse o poder judiciário, levando-o a um processo moroso, além de muito custoso, desestimulando o investimento desse mercado.

Foi exatamente em razão dessa morosidade do judiciário que surgiu a necessidade de se criar um método mais célere, seguro e econômico, para impulsionar o mercado imobiliário, que poderia ter mais segurança para recuperar seu crédito imobiliário, em caso de inadimplência.

Dentro desse cenário jurídico e econômico foi criada a Lei 9.514/1997, que instituiu e regulamentou a alienação fiduciária em garantia de bem imóvel, bem como o procedimento extrajudicial para recuperação de crédito imobiliário, sendo a modalidade de financiamento mais utilizada pelo mercado atualmente.

PROCEDIMENTO DE INTIMAÇÃO DO DEVEDOR FIDUCIANTE

Caso o devedor fiduciante não pague a obrigação – ou parte dela –, o devedor poderá ser constituído em mora, para dar início ao procedimento de consolidação da propriedade em favor do credor fiduciário.

Desde que a propriedade fiduciária esteja constituída, mediante registro do contrato no Registro de Imóveis competente, o credor fiduciário deverá intimar o devedor por meio de notificação extrajudicial feita pelo oficial do Registro de imóveis, para pagar as prestações vencidas e as que vencerem até a data do pagamento, no prazo de 15 dias, acrescidas de juros, multas contratuais, encargos e demais despesas, conforme § 1º do artigo 26 da Lei 9.514.

O § 3º do mesmo artigo dispõe que essa intimação deverá ser feita pessoalmente ao devedor, ou seu representante legal ou procurador regularmente constituído, o que acabava por dificultar todo o procedimento extrajudicial de consolidação da propriedade, nos casos em que o devedor manifestamente se ocultava ou não estava em local incerto e não sabido.

A obrigatoriedade de intimação pessoal, nesses casos, acabava indo totalmente na contramão da intenção do legislador quando da criação da Lei e de um processo célere de recuperação de crédito imobiliário.

Em 2014, a Lei 13.043 inseriu o § 4º no artigo 26, para permitir que o devedor fosse intimado por edital, quando se encontrava em “local ignorado, incerto ou inacessível”, devendo tal fato ser certificado tal fato pelo serventuário encarregado da diligência.

Posteriormente, para suprir outra lacuna que a Lei não havia previsto e que acabava por dificultar a execução da garantia pela via extrajudicial, a Lei 13.465/2017 incluiu novidades procedimentais na Lei 9.514/97, entre elas os §§ 3-A e 3-B no artigo 26, prevendo a possibilidade de intimação do devedor por hora certa:

§ 3o-A. Quando, por duas vezes, o oficial de registro de imóveis ou de registro de títulos e documentos ou o serventuário por eles credenciado houver procurado o intimando em seu domicílio ou residência sem o encontrar, deverá, havendo suspeita motivada de ocultação, intimar qualquer pessoa da família ou, em sua falta, qualquer vizinho de que, no dia útil imediato, retornará ao imóvel, a fim de efetuar a intimação, na hora que designar, aplicando-se subsidiariamente o disposto nos arts. 252, 253 e 254 da Lei no 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil).

§ 3o-B. Nos condomínios edilícios ou outras espécies de conjuntos imobiliários com controle de acesso, a intimação de que trata o § 3o-A poderá ser feita ao funcionário da portaria responsável pelo recebimento de correspondência.

Essas alterações feitas na Lei 9.514 deveriam devolver a celeridade ao processo de execução de alienação fiduciária, permitindo a intimação de devedores por hora certa, nos casos em que houvesse “suspeita motivada” de ocultação ou a intimação por edital em caso de encontrar-se o devedor em local “ignorado, incerto ou inacessível”.

Contudo, não é o que se experimenta na atuação prática cotidiana.

Os notários e registradores se submetem à Lei 8.935/1994, chamada de Lei Orgânica dos Notários e Registradores, cujo artigo 22 trata da responsabilidade civil desses agentes públicos delegados:

Art. 22. Os notários e oficiais de registro são civilmente responsáveis por todos os prejuízos que causarem a terceiros, por culpa ou dolo, pessoalmente, pelos substitutos que designarem ou escreventes que autorizarem, assegurado o direito de regresso.

Tem-se que, muito provavelmente em razão do risco de responsabilização civil e criminal, o que ocorre na prática é que os registradores evitam certificar que os devedores estão em local incerto ou a suspeita de sua ocultação, devolvendo as intimações negativas com a exigência de o credor informar outros endereços, o que inviabiliza a notificação por hora certa e edital e, por conseguinte, todo o processo de consolidação da propriedade.

INTIMAÇÃO PELA VIA JUDICIAL EM CASOS DE IMPOSSIBILIDADE DE INTIMAÇÃO DO DEVEDOR

Tanto a Lei 9.514/97 como as Normas Extrajudiciais da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo não preveem a possibilidade de intimação dos devedores pela via judicial.

Contudo, encontrou-se na doutrina de Sérgio Eduardo Martinez, “Novo Direito Imobiliário e Registral” , o entendimento pela possibilidade de intimação judicial:

Embora não prevista na Lei n.º 9.514/97, não se pode descartar a intimação via judicial. A importância do ato de intimação e suas consequências em caso de qualquer irregularidade posteriormente verificada tem o alcance de macular e prejudicar todos os atos posteriores. Daí a necessidade de especial atenção ao ato inicial de execução do contrato de alienação fiduciária.

Talvez encontrando o credor e o registrador dificuldade em realizar a cientificação do devedor, poderão valer-se da intimação judicial, onde poderá o oficial de justiça se valer das prerrogativas legais como citação por hora certa, certificação da recusa do devedor em assinar a intimação, etc., como forma de evitar possíveis impugnações do ato, de que posteriormente possa se valer o devedor.

Da mesma forma, o Colégio Registral do Rio Grande do Sul entende pela possibilidade de intimação pela via judicial, conforme trechos de soluções de consulta abaixo:

Assim, é salutar informar ao requerente da intimação de que poderá desencadear novo procedimento no Serviço Registral ou requerer, judicialmente, a notificação do devedor marido.
(Disponível em: https://www.colegioregistralrs.org.br/registro_de_imoveis/ri-alienacao-fiduciaria-intimacao-situacao-recebemos-uma-intimacao-de-mora/. Acesso em 24/0/2022).

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Outro procedimento que pode ser adotado é o da intimação na via judicial. Ao decidir sobre as notificações decorrentes das relações entre o loteador e o promissário comprador, o Supremo Tribunal Federal já se posicionou no sentido de que vale igualmente a notificação feita pela via judicial, apesar de a lei prever tão-somente a notificação pelo Oficial do Registro de Imóveis ou, subsidiariamente, pelo Oficial do Registro de Títulos e Documentos. “A notificação judicial tem a mesma eficácia da notificação pelo oficial do registro público, de que trata o art. 14, do Decreto n. 3.079, de 1938” – RE 70553-SP.
(Disponível em: https://www.colegioregistralrs.org.br/registro_de_imoveis/intimacao-de-fiduciante-recusa-em-receber/. Acesso em 22/04/2022).

Em 2013, a 1ª Vara de Registros Públicos de São Paulo, nos autos do Pedido de Providências nº 0038436-05.2012.8.26.0100 decidiu pela impossibilidade de intimação por hora certa, bem como pela intimação por edital, considerando que a apenas a notificação judicial, como última medida, esgotaria a aplicação de todas as modalidades de intimação:

A Lei n° 9.514/97 em seu art. 26, § 3º, define o procedimento da intimação a ser feita ao fiduciante pelo Oficial Registrador do Serviço de Imóveis.

Porém, nesse procedimento não está estabelecida a possibilidade de intimação por hora certa a ser realizada extrajudicialmente, quando a pessoa a ser intimada estiver se ocultando para evitar a intimação. Nem tampouco poderá ser feita nesse caso a citação por edital, pois a fiduciante não se encontra em local incerto e não sabido.
A sugestão do 7º Registro de Imóveis da Capital à requerente é oportuna e pertinente ao caso concreto.
Apenas a notificação judicial possibilitará a aplicação de todas as modalidades de intimação previstas no Código de Processo Civil.
Isto posto, INDEFIRO o pedido formulado na inicial pela Caixa Econômica Federal

Cabe salientar que, à época da decisão, a Lei 9.514 não havia sido alterada para permitir a intimação por hora certa. De qualquer forma, já entendia a Vara de Registros Públicos da Capital pela possibilidade de intimação judicial dentro do processo extrajudicial de execução de alienação fiduciária.

Em outro julgado da 1ª Vara de Registros Públicos de São Paulo, pode se verificar, por um trecho da decisão de 16/01/2018 do Pedido de Providências nº 1101751-14.2017.8.26.0100, o entendimento favorável à intimação pela via judicial, desde que a notificação se iniciasse junto à serventia extrajudicial e, posteriormente, fosse realizada a notificação judicial:

Com razão o Registrador, bem como a D Promotora de Justiça. A alienação fiduciária é regulamentada por lei específica, qual seja, a Lei nº 9514/97. Neste contexto, o interessado pode optar por iniciar o procedimento de notificação ou na via judicial ou na via administrativa, sendo certo que os procedimentos são divergentes. Na presente hipótese, houve a opção pela execução extrajudicial ao pretender a purgação da mora no Registro de Imóveis, devendo, portanto ser observado o procedimento estabelecido no Cap. XX, Seção IX, itens 230 a 262.

Logo, a notificação deveria iniciar-se junto à Serventia Extrajudicial, seguindo todos os requisitos legais estabelecidos nas Normas de Serviço da Egrégia Corregedoria Geral da Justiça e, caso as diligências resultassem negativas, o credor poderia valer-se da notificação judicial, após a qual abrir-se-ia o prazo no Registro de Imóveis para o devedor purgar a mora.

Neste contexto, como bem exposto pelo Registrador: “A notificação judicial, sem o ingresso do procedimento de execução extrajudicial no Registro de Imóveis, não tem serventia nenhuma para cumprir os ditames da Lei nº 9514/97”.

Por fim, em um julgado de 2020, a Corregedora Geral de Justiça do Estado de São Paulo, apesar de entender pela validade da intimação judicial, negou provimento ao recurso originado do Pedido de Providência nº 1005984-71.2018.8.26.0048, decidindo pela validade de cancelamento da prenotação, uma vez que a credora somente comprovou a intimação judicial após o decurso de prazo de 120 dias concedido pelo registrador:

REGISTRO DE IMÓVEIS – Procedimento administrativo – Alienação fiduciária – Decurso do prazo concedido à recorrente para intimação judicial da devedora fiduciante – Prenotação cancelada – Posterior comprovação do cumprimento da exigência perante a serventia extrajudicial – Inexistência de previsão normativa para prorrogação da prenotação, no caso em análise, ou restabelecimento de sua validade – Prosseguimento do procedimento já arquivado – Impossibilidade – Recusa formulada pela registradora mantida pelo MM. Juiz Corregedor Permanente – Recurso não provido.

CONCLUSÃO

Em que pese não haver previsão legal, entende-se pela viabilidade e legalidade da intimação judicial nos casos em que se demonstra inviável proceder à intimação do devedor pela via extrajudicial, desde que o procedimento de intimação para purga da mora seja iniciado na serventia extrajudicial e que a credora mantenha a prenotação ativa, evitando seu cancelamento pelo decurso de prazo sem manifestação.

Sugere-se cautela, pois uma vez que não existe previsão legal ou regramento extrajudicial que permita ou regulamente a intimação judicial de devedor em execução de alienação fiduciária, deve ser verificado qual o procedimento que cada registrador adota para esses casos, de forma a se evitar nulidades e o indeferimento do lançamento da certidão do transcurso do prazo sem purgação da mora.

ÁREA DE RECUPERAÇÃO DE CRÉDITO

N Partners atua nos procedimentos de execução de alienação fiduciária, promovendo a intimação dos devedores, consolidação da propriedade e a realização dos leilões por meio de leiloeiros de confiança e regularmente habilitados. N Partners possui uma área exclusiva para esse tipo de recuperação de crédito, atendendo grandes incorporadoras e loteadoras.

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Artigo extraído e adaptado de parecer jurídico elaborado pelo sócio do escritório a pedido de cliente incorporadora. TARIK FERRARI NEGROMONTE, autor do parecer, é o sócio responsável pela área de execução de alienação fiduciária do escritório.